quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Nas ruas da minha terra


Vislumbro memórias de mim pequena pelas ruas da minha cidade. Mergulho em lembranças e vejo os meus pés pequenos a percorrerem a calçada típica de losangulos azuis da cidade do Liz. Atravesso a cidade em passos rápidos e rompo a rua do pão quente nas traseiras do cinema, hoje o Teatro José Lúcio da Silva.
Outrora esta zona da cidade tinha uma maior população diária flutuante e residente. A área circundante ao hoje pouco frequentado centro comercial Liz servia para se fazerem as compras de supermercado e outros pequenos afazeres mundanos. Ali, almoçava com a minha mãe todos os dias no Fred, um pequeníssimo bar, onde ainda hoje se servem refeições rápidas de pé. Para os mais pequenos como eu abriam-se pequenos tampos de madeira pouco mais acima do nível da cintura dos adultos. Era uma festa para mim e para a minha irmã que nos sentíamos especiais pelo direito a mesa individual e um banco para nos sentarmos. O casal anfitrião cumprimentavam-nos sempre de forma amistosa e em particular o dono ressaltava-me a vista pela semelhança facial com o cozinheiro consagrado das capas de revista de culinária que a minha mãe comprava. Ouvia as conversas e comentários de adultos aos quais não ligava. Cá fora estava a abelha Maia que fazia as delícias das crianças tal como nós éramos. E assim lá fora permanecia um conjunto de lojas e de vida que era um mundo aos meus olhos.
Ao final do dia faziam-se as compras no Ulmar. Num constante receio de perder a minha mãe de vista, entre corredores e carrinhos das compras, a minha atenção parava nos múltiplos coloridos embrulhos de doces e nos chapéus de chocolate. Outrora com 6 anos, eu e um primo fugimos da praça Rodrigues Lobo para a Heróis de Angola à procura desses chocolates. Enchemos o carro com todas as iguarias que nos vieram parar às mãos e fomos apanhados em flagrante delito. Leiria era uma aldeia na altura e rapidamente fomos identificados como filhos ou netos de a e b.
Ali perto, um pouco mais abaixo do outro lado da rua, regalávamo-nos com as montras de bolos da há muito extinta Soraya. Podíamo-nos sentar ao balcão e comer um croquete ou sermos servidos à mesa com um galão bem quente e uma torrada. Era o que se comia na altura. Não existiam folhados, panikes ou quiches.
Nesse tempo Leiria acabava a pouco metros dali. Não existia Maringá ou muito menos o ansiado grande edifício espelhado 2000 que ficou muito aquém das expectativas da época.
Voltando atrás, um pouco mais ao centro nas ruas igualmente movimentadas da Combatentes da Grande Guerra residia o Colonial. Café igualmente familiar e mítico da cidade, onde acompanhava muitas vezes a minha mãe ou avó para tomarem um café e um cigarro.
A minha memória transita para o largo Afonso Lopes Vieira onde hoje se encontram algumas lojas de marca de Leiria. Sozinha de tarde e com o direito à minha cidade toda para palmilhar até às muralhas do castelo, iniciava a minha aventura com um croissant simples a 45 escudos numa pastelaria que hoje já não existe. A tarde a mim pertencia e eu era verdadeiramente livre nos meus inocentes 7,8, 9 e 10 anos de idade. Fazia das ruas e quelhas ascendentes ao castelo as minhas peripécias e descobria cada casa, cada porta e cada canto da parte velha. Mais tarde na adolescência, aquelas ruas iriam tornar-se cúmplices em diversão e em outras novas descobertas próprias da idade.
Rumo a casa atravesso o Mercado Santana. Da minha mais pequena infância resta-me uma imagem diluída da velha calçada portuguesa gasta e suja de hortaliças e cascas de fruta em direcção à peixaria do mercado. Cá fora abre-se a travessa ainda em paralelos do Lizbar, o restaurante que outrora fez parte da minha infância familiar. Olhando para cima ergue-se a imponente escadaria da cidade com oito lances de 12 escadas até à minha rua, a José Jardim.
Lá do alto do pedestal do meu reino admiro a parte velha da minha cidade com o castelo em linha com os meus olhos. Nas minhas costas construía-se em lajes e pilares de betão a Marquês de Pombal. A outra imagem remanescente da minha infância e puberdade. Hoje a suposta arrumada e afamada avenida das tias de Leiria e população emigrante brasileira, nada tem a ver com outros tempos. A Marquês de Pombal era a Henrique Sommer, a Escola Amarela, o Jardim Escola, a Galé e o Largo do Seminário. Tudo o resto era mato, oliveiras e casinhas antigas até ao Eurosol. A área circundante da Marquês de Pombal daqueles tempos dava às crianças a oportunidade de brincarem como se estivessem no campo. Faziam-se cabanas nas árvores, desciam-se rampas de mato em caixotes, chegávamos imundos a casa e ainda tínhamos direito a uns tabefes no rabo. Na Marquês de outros tempos apanhávamos amoras das silvas em direcção ao campo de futebol do seminário, andava-se de bicicleta, jogava-se à bola e ao elástico e mais tarde namorava-se às escondidas. Na Marquês de outros tempos as crianças passavam horas na rua, andavam sozinhas desde bem cedo e fugiam aos ciganos. Na Marquês de outros tempos encontro as memórias mais fraternas da minha tenra infância, na casa da minha avó materna, no Jardim Escola onde aprendi a desenhar, a escrever o meu nome na grande cartilha e na escola amarela o ensino primário.
Ao fundo da Marquês, abre-se a outra avenida de moradias e prédios baixos, a Avenida Nossa Sra. de Fátima que para os putos daquela rua era apenas a avenida. Ao longo da avenida onde outrora também morei ergue-se o monte da Nossa Sra. da Encarnação e a primeira casa onde morei depois de nascer na casa de saúde Leiria.
Em memórias alimentadas com histórias e fotografias, vivi até aos 3 anos no sopé do outro monte que compete com o castelo. Até à igreja da N. Sra. da Encarnação os degraus eram estranhamente inclinados e faziam eco. Era tão deserto e sinistro tal como hoje. O Monte da N. Sra da Encarnação tem uma das vistas mais privilegiadas sobre a cidade e de acesso a todos sem no entanto fazer-se disso o seu justo proveito. A Nossa Sra. de Encarnação de hoje continua a ser ponto de passagem a mirones ressabiados, a forasteiros de botellhon e devoradores de McDonalds que deixam os seus despojos pelo chão. Apesar da sua beleza natural desprezada e do monumento que foi motivo de grandes procissões, o monte da Nossa Sra. da Encarnação ainda não foi transformado naquele que podia ser o mais belo parque da cidade.
Na rua onde eu nasci, voltei a morar pela última vez em Leiria. Desejo profundamente que assim seja. Na rua onde eu nasci encontra-se uma das tascas mais antigas e afamadas da cidade, a Ti Gracinda. Atravessando o largo onde foi a praça de touros da cidade até ao ciclo velho onde também estudei, podemos encontrar algumas das casas camufladas mais bonitas de Leiria e os desenhos na calçada portuguesa que nos faziam saltar de azul em azul até ao inicio da Rua Tenente Valadim.
O cheiro da subida da Fonte das Três Bicas despertava-nos para a chegada à baixa. Ao largo das 3 fontes de água onde só se podia beber da bica do meio senão nunca nos casaríamos, faziam-se os trabalhos nas oficinas publicidade da Tudor de onde brotava um forte odor dos calabouços dos edifícios contíguos. Lembro-me das mulheres de saias e meias até aos joelhos, com bacias na cabeça assentes em rodelas grossas de pano vindas da fonte de roupas lavadas ou por lavar.
Nas ruas da minha terra eu vi isso tudo e tantas outras coisas mais. Nas ruas da minha terra, eu ainda sou a criança que assume a sua chegada no túnel de tijolo de burro da ponte sobre o rio Liz e que mergulha na cidade indecisa entre o Marachão e a praça guardada pelo castelo que a viu crescer. É nas ruas da minha terra que palmilhei que guardo as memórias mais felizes da minha infância. É nas ruas da minha terra onde eu nasci onde o sangue do meu sangue crescerá e onde pretendo permanecer sem a eminência feroz da necessidade de emigrar para outro país.
É nas ruas da minha cidade da terra onde eu nasci e cresci, que eu vou viver e morrer feliz.
Filipa Pereira
02.02.2012

2 comentários:

  1. Minha querida, mais um texto maravilhoso. Que bem me lembro das ruas da nossa cidade. Que saudades desses tempos, a minha avó era uma das senhoras que vendia no mercado santana as hortalíças, e me dava sempre um pastel de nata ou uma merendeira de batata doce :) obrigada amiga pela partilha. Um grande beijinho

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